“La La Land” me trouxe memórias

Quando éramos adolescentes, eu e minha irmã, entre aulas de sapateado, passávamos tardes assistindo, encantadas, a filmes estrelados por Fred Astaire e Gene Kelly. Apoiávamos Ginger Rogers em seu argumento de que fazia tanto quanto Astaire, “mas de costas e de salto alto” –sempre achei mais confortável dançar com o sapato masculino, e ela estava certa de reivindicar o seu reconhecimento em pé de igualdade com o astro. Nem me lembrava mais, mas na parede do meu quarto, por anos, mantive a foto de uma bela cena de dança dele com Rita Hayworth –e outra de Gene Kelly batendo calcanhares no ar. Eram precárias impressões, feitas a partir de uma enciclopédia digital em tempos coxos de computação, mas que tinham seu papel na criação da identidade daquele meu espaço (que externava minha personalidade). Agora, meia vida depois, foi o filme “La La Land” que me trouxe esse recorte de memória. Fomos ao cinema na quarta e, no dia seguinte, quando cheguei em casa, Ronny Santos me esperava com pipoca e cervejas, com a proposta de vermos novamente o favorito ao Oscar da perspectiva de nosso sofá. Lindo! Uma covardia imensa compará-lo aos musicais de antigamente, como fizeram alguns críticos que torcem o nariz à produção de Damien Chazelle. Não há, ali, a intenção de Ginger: não é para ser equiparado a eles, mas sim para trazê-los de volta ao nosso imaginário. O projeto do longa está representado pelo próprio Sebastian, personagem de Ryan Gosling: a paixão pelos monstros do passado se faz presente e necessária, mas se adapta a uma nova concepção artística, sem perder sua essência. É, sim, uma prolongada reverência –e as referências não são poucas– aos grandes filmes e artistas que marcaram época. Embora carismáticos e talentosos, Gosling e Emma Stone não são colocados em cena com a pretensão de serem alçados ao status de astros modernos dessa modalidade, até porque os números de dança deixam bem claro que não é por aí. Por meio deles, apenas, somos arrebatados pela beleza do romance ingênuo, coreografado e cantado, que nos embala nos sonhos dos protagonistas e do próprio autor, com suas ousadias visuais. Em tempos de tanto realismo, sermos devolvidos à pureza mágica da época de ouro do cinema, com seus bastidores, truques e clichês, é uma experiência adorável. E é no contraste entre o resgate dessa fantasia e o entendimento do contemporâneo, embora a estética do longa nos conduza à ideia do atemporal, que está o grande trunfo de “La La Land”. “Não é nostálgico demais?”, pergunta Mia. “Que se dane!”, encerra e encoraja Sebastian. Somos, ao final, sutilmente levados a pensar sobre nossos próprios anseios e sobre o que vem sendo tirado de nós à medida que avançam a sociedade e a tecnologia. Qual o peso de nossas escolhas?

Gene Kelly em foto da minha parede

Rita Hayworth e Fred Astaire

Por Isabela Rosemback

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Alô, (meu) Houaiss!

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Reprodução da página 338 da 2ª edição (revista e revisada) do míni Houaiss, ano 2004 ::: Editora Objetiva

Quedê a felicidade? Quedê a fêmea, com suas feminices e feminismos? Quedê o fêmur da fera felina? E o fedor, como defines? A febre, a fecundação? Quedê o feijão nosso de cada dia, a brasileira feijoada? O feno do cavalo, o felpudo casaco para os dias gélidos? A fenda na pele, que não cicatriza? Fenece? O gosto amargo de fel, de Gonzaguinha? Quedê o feio para se impor ao belo? O fenômeno e o feitiço, em contraponto ao previsível, ao racional? A petulância do fedelho? A fécula para o meu nhoque? A fechadura para trancar segredos? És, agora, o feitor das palavras? Mas quedê, que não existes nas próprias páginas? Ah, mas que fementido glossário!

Por Isabela Rosemback

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O peso do convívio (ou múltiplas leituras)

despair

Carregas a culpa que te escapa do saber. Talvez por saberes diferente, fio de permanência. Enquanto todos rumam à barca, tu te ancoras nas profundezas do teu ser. Finca-te seguro nos grãos que te constroem e silencia as vozes que querem de ti o que não és, nunca foste e jamais deverias ser. A conta de tua culpa é de quem te julga por negares unInsanidade. Sofreste este tempo todo à toa, pois és coisa bela. Ouça: tu te destoas da coisa toda. Desperta!

Por Isabela Rosemback

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15/11/2016 · 16:33

Uma crônica sem sentidos

De onde eu vim, uma escura bigodeira já nem arrisca abafar o piado que lhe escapa ambicioso pela cavidade que acabana, agudo de ferir tímpanos e nervos. Ao longe, o anúncio de sua chegada se faz de forma abrutalhada, com o oscilante assobio ocupando simultaneamente todos os ouvidos de seu perímetro sonoro.  Não é uma troca justa, pois ao bigode que nada enxerga não é concedida a luz que descerra sua visão de mundo.  Já às dormentes orelhas que tudo veem, a elas é dada uma chance de reagir ao desconfortante estímulo da provocação. Por fração de segundo, estimuladas pelo alto zunido a que abruptamente são expostas, as entranhas auditivas deixam o canal livre para que cada pio artificial do farto conjunto de pelos lhes reconceda o hesitante prazer da escuta atenta e gratuita. Afinal, há liberdade no canto de ave que expressa o imitador.  Mas à medida que ele se aproxima do orelhame, eleva o volume de sua descarga vocal. E o assobiador avança e bengala o chão, e os passos, seguros. Há, tão logo, regresso silêncio entre os ouvintes. Pálpebras contraídas: o som perfurante cutuca o convívio e irrompe a harmonia do espaço. A todos resta o recuo à balsâmica ausência de ruído. Condutos fechados formigam. Os ponteiros, como o monte de pelos bucais, seguem à risca trajeto usual, sem que muitos (alguém?) os percebam. Nem tic nem pio, nada mais vibra no ar transpassado pela outrora rumorosa pelugem, uma sina que leva para onde quer que vá, ainda que tudo mude. Até encontrar os seus, com quem delira em cantoria.

Por Isabela Rosemback

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Prazer , Isabela

Dos pequenos prazeres da vida:

Poder voltar sempre à cidade em que nunca me perco
Torcer e retorcer um texto até dar bom caldo
Entornar palavras correntes entre um e outro trago
Sugar picolé de coco (que se lê ‘côco’, não é cocô)

Mais: estar entre os que me conhecem bem e que bem sabem lidar com isso.

Por Isabela Rosemback

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Morte Adjetivada da Roda

Naquela sala burocrática onde muito entrava e quase nada saía —uma espécie de fortaleza corporativa à prova de obreiros—, Zé pisou mareado pela liquidez do solo que o embalava com ressaca causada não só pela revolta dos aquíferos, mas também pela inquietude da moral, embora ficasse confuso sobre o significado daquilo: que moral tinha ele, afinal? Zé descalço e duramente ornamentado. Passou pelo vão da porca porta já atordoado pela luta que o impulsionara até aquele fétido fundo de cômodo, que mais parecia um longo corredor de espinhosas paredes ­­­­­­sedentas por lhe espetarem a pele em busca de alimento. O atalho vencido levava o avatar à fase final do jogo, ali diante de seus opositores para o derradeiro e enfadonho enfrentamento. Assento não tinha, obviamente. Pelo menos não para ele —o maldotado e errabundo peão descalço, sempre trajado de rota armadura de ferro. Surfista cearense na Praia do Futuro, equilibrando-se naquele chão movediço com destreza e contrariedade.

Cercado pelas pilhas de atrasos empapelados que separavam o servo do servo –e esta era outra ideia que lhe levava a coçar o cocuruto, Como o mesmo podia apresentar-se como tão diferente? (e sempre, em sua feliz ignorância, acabava sorrindo irônico sem nem cutucar resposta)—, o oponente tentava ser elegante sem sucesso (era algo que não lhe cabia, tinha mau caimento). O burocrata, dono de nada a não ser aquela ilusória crença no poder, usava uns trapos fingindo-se de finos, mas que denunciavam a sua provável doença de nome pomposo (hiper…), a começar pelas enormes poças absorvidas pela camisa nas odoradas suvaqueiras peludas. Duas enormes pizzas, reparava o alvo, chegando a pensar que talvez fosse esta a razão da correnteza indomada sob os seus pés (por bem, o nojo repentino logo expulsou a imagem de suas ideias com rispidez). No peixeiro administrativo, aquela frequente expressão facial de quem não sabe a que veio, bem como aquelas pálpebras pesadas de morosidade e preguiça, faziam-se desconcertantes. O senhor das cifras e dos nomes catalogados era pouco consciente de seu caráter substituível, mas deliciava-se com a substituição daqueles que organizava por ordem alfabética em seus escaninhos. Zé sabia bem do alheio prazer sórdido —o rei das secreções era também previsível— e tratou de desviar o olhar daquele rosto orvalhado e sádico que fitava a ele e a seus documentos, recém-entregues, com gula demoníaca.

Bastou esticar um pouco a vista para além do incômodo, que uma segunda pessoa lhe surgiu em foco. A presença vestia um tailleur que certamente havia tirado do armário da filha (só essa versão parecia fazer sentido ao crítico Zé daquele momento) e mumificou-se desconfortável a espreitar os acontecimentos. Apenas mexia os olhos pretos e saltados em direção a um servo e a outro —ela também enquadrada na categoria— em sequência sincopada. Por sua vez o pobre Zé, então prestes a grafar o final no caderno de pontos, não assinou nada, na primeira pressionada, por se distrair com a dramática súplica de um botão que compunha o encolhido terninho claro da dama empalhada: a casa à altura do ventre, em que a peça alojara-se, era repuxada para o lado contrário àquele em que ela estava costurada. A esfera enforcada ameaçava romper com as amarras, e Zé temia a fratura das linhas no instante em que reparou em outro detalhe no boneco de cera de anexos olhos vivos: finalmente folgado, graças a uma bem arejada fresta entre os lados de tecido esticados em repulsão, o umbigo da senhora embalsamada fazia graça ao observador, que teve de se conter para não rir de tão decadente performance em hora inoportuna como aquela.

Assinou as folhas todas e despediu-se, aquele mesmo homem, naquele mesmo dia, pensando nos próximos blocos de cimento que teria de carregar em obras posteriores –talvez fossem só tijolos, o tempo diria. E já na área externa do abafado centro de negócios, o remanso alcançou seus pés. Sentindo o refresco entre os dedos, Zé despiu-se da pesada vestimenta que o sufocava e enfim entregou-se ao banho de calmaria daquelas águas. O botão em crise já podia arrebentar à vontade, não se importava. Estava longe.

Por Isabela Rosemback

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Mais vale pouco

Não que minhas mãos se fizessem duras, mas também meu riso estava longe de estar mole. Bem ficava na solidão do meu cúmplice relacionamento, longe daquela multidão que preferia esvaziar o salão nos últimos minutos do show para evitar, assim, transtornos para aquele efêmero momento de suas vidinhas (de cada uma delas), soltando um velado “foda-se” para a música que estava sendo exposta. E o cantor ali, emudecido em seu raivoso cantorinhar autoral —quanta perda de saliva eu calculei! A lealdade dos fãs apenas no conforto, reduzindo a apresentação a um fictício espetáculo do absurdo. Um na mão vale mais do que vários voando era expressão que nada tinha a ver com aquilo, mas que pareceu fazer sentido quando tudo parecia ter ido para os ares, menos o amor romântico. Uma pieguice, ri mais tarde, mas você há de concordar que de mau gosto o entorno está cheio. É que no silêncio da casa os sons são menos opacos, você pode ouvi-los claramente a cada palavra que te acerta sem pudor ou regra. É nelas que você se reconhece sem precisar de um escudo refletor. Afinal, esse tipo de dialética não tem fórmulas ou formas, ou gêneros, ou hora marcada, muito menos respeita os seus horários e agenda, apenas vem e vai como num sopro de lucidez ou desespero. Sem maquiagens corretivas, sem teatrinho improvisado que conforta a realidade confrontada. Punhos semi-cerrados para darem um cruzado imaginário nas adversidades escolhidas, e o riso contido para não debochar daquilo que nunca me pareceu engraçado. Apenas as minhas mãos foram impedidas do relaxamento e do ataque, e meus lábios contiveram-se em suas contrações ou afrouxamentos. Todos os membros permanecem alertas, mas em paz. A vida mostra-se outra quando menos extremista, ainda que permaneçamos fiéis ao que nos move e ao que mantém os nossos pés no chão.

 

"Two of us riding nowhere... in the sun"

“Two of us riding nowhere… in the sun”

 

Por Isabela Rosemback

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Coisas assim

De perninhas tão finas, que seria impossível torcê-las, e um marrom desbotado de camuflar-se pelas rachaduras dos galhos, escolheu justo os meus branco dedo e fluorescente braço para aventurar-se pela manhã. Não foi bem um susto, porque eu já o fitava desde que cheguei aqui, nesta quarta-feira. No teclado preto em relevo, me chamou a atenção a escolha pelos caminhos mais difíceis, escalando o 1 e o Q, desequilibrando-se entre o A e o W, desesperado para sair do Z e sentindo firmeza na longa tecla de espaço. As anteninhas trêmulas, e eu aguardando que ele completasse a lenta e desnorteada maratona para poder voltar à minha escrita. Bastou uma distração e lá estava ele em meu indicador, interrompendo novamente a minha corrente de ideias. Ergui a mão com o dedo em riste para bem pertinho do meu rosto e, conforme ele apalpava a minha pele, tão leve que nem cócegas eu sentia, fui relaxando as articulações. Fiquei ali a reparar em seus movimentos e acabei criando um vínculo imaginário com ele, meu novo amigo sem nome. Chamei-o joaninho, pela obviedade de sua forma, e achei extremamente ridículo e de mau gosto. Pensei tê-lo visto na mesma hora franzir a fronte, que tinha apenas três pontinhas negras sinalizando que ele deveria estar me entendendo, mesmo que em um provável mosaico de cores estranhas. Quis acreditar assim, diante da nova companhia.  Enroscou-se em minha unha e temi por aquelas frágeis patinhas a se debaterem entre a ponta do dedo e a estrutura vermelha. Salvei-o do perigo e voltei aos textos, ele (será que era ‘ele’, mesmo? Ele inseto, sim. Meu amigo) andando por toda a vastidão daquela enorme mesa que tinha a desbravar. Alguns minutos e o pequeno novamente em mim, agora no braço. Desisti da tarefa que penava em tentar completar e me rendi à carência daquele bicho. Pedi que ficasse à vontade em sua caminhada em direção à minha mão, e ele cambaleava. Foi então que senti uma dor ardida, daquelas que contraem o corpo e chegam ao ouvido, bem ali, onde ele estava. Não sei se foi trairagem ou se apenas se agarrou em mim. No reflexo, xinguei alto e ele foi parar longe com apenas um peteleco. Terminava ali todo o romantismo criado em minha cabeça, e eu ainda sentindo a perda e me recriminando pelo ato impensado. Bom foi que ele voltou ao meu campo de visão em pouco tempo e, fingindo-se de morto, me acompanhou quietinho pelo resto da tarde em cima do caderno –em cumplicidade, fingi que acreditava em seu óbito. Ao final do dia, levantou-se meio tonto e pegou a estrada, ainda em tempo de eu dizer adeus e confidenciar que foi boa a rápida parceria.

Ele em meu braço

Ele em meu braço

Por Isabela Rosemback

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Calma, moça…

A semana pareceu-me duas, mas foi uma só. Entre lutos, festas, e muito trabalho novo, não tive tempo nem de pensar em mim ou mesmo em tudo o que está acontecendo com as mudanças que escolhi para a minha vida, ainda sem tantas definições. “Eu acordo e durmo falando com você”, disse a nova cliente, sem mentir. Acordar tem sido um salto da cama, com ideias já fervilhando. Um dia de efêmera despedida, dois dias de viagens, outros de muita agitação por aqui, mas a mente nunca em descanso. Nem parece que até terça eu estava sentada naquela bancada, onde tudo é calmo e a gente engorda sorrindo. A ficha ainda não caiu, não teve espaço pra isso. Nem mesmo o luto figurado vivido na semana pôde ser assimilado –e muito menos digerido, o que certamente demandará mais tempo e empenho de minha parte.
O contexto todo se justifica porque, abandonando a calmaria para viver na correria, entrei em um estacionamento de supermercado ao final da última semana ainda pilhada, pensando nas mil coisas que povoavam a minha cabeça naquele momento, e, ao avistar uma vaga e perceber que um casal caminhava em minha direção a alguns passos dela, me apressei a embicar o carro para estacionar de ré em tempo mínimo, a fim de não segurar os pedestres. Os bracinhos multiplicavam-se mudando a marcha e fazendo manobras estapeando a direção –um desespero só! Foi aí que ouvi, quando olhava para o lado oposto ao da voz:
— Calma, moça! Sem pressa… Pode estacionar tranquila, não tem problema.
A sensação foi a de como se tivesse tomado um relaxante muscular, daqueles que nos deixam grogues e esparramados no sofá. Respirei aliviada e senti um amarguinho me torcer a goela. Naquele instante anestesiado parece que retomei a consciência. Eu estava indo para o descanso, obstinada a comprar uma caixinha de cerveja para dividir com a minha irmã, em um pedido de trégua à turbulência, mas ainda agia no piloto automático acima da velocidade média permitida.
Voltei-me àquela senhora com um olhar semelhante ao de um vira-lata que recebe um afago ao invés do chute esperado. Era uma mulher de fios brancos, longa trança e marido ao lado, e que sinalizava com a cabeça uma amigável autorização: “Pode demorar, filha. Não se apresse”, numa tradução livre de sua mímica afirmativa.
Ao entrar na vaga e ao ver a paciente mulher passar em frente ao carro, abri o vidro eufórica e gritei o obrigada mais agradecido da minha semana. Duas vezes. Ela continuou andando naquele corredor de veículos, empurrando suavemente o seu carrinho. “Obrigada”, repeti para nós duas, mesmo ela a perder de vista. Tardei a sair do carro e circulei vagarosa por entre as baias do comércio.
Numa semana em que a morte anunciada do respeito me espetou o ouvido e me alterou os batimentos cardíacos e o tom de voz, essa gentileza tão aparentemente ingênua me fez pensar que o mundo não é assim tão ingrato e individualista como vinha sendo pintado à minha frente nos últimos dias. E a voz dessa senhora, tão incrivelmente colocada em meu caminho, no fundo soou-me como se uma manifestação externa de um desejo propriamente meu.
Escrevo para agradecer novamente a ela por me permitir parar por alguns minutos, em meio ao fluxo, para pensar sobre o que de fato me move. Também por sua permissão para que eu pudesse ocupar um novo lugar sem toda aquela pressão que promove a cegueira e a deformação. Quisera eu poder fazer o mesmo e, portanto, poder dizer “Calma, sem pressa. Ponha-se no seu lugar”. Feito isso, igualmente passaria pelo corredor arrastando a minha bagagem, sem precisar olhar para trás. O problema é que ando meio rouca e alguns motoristas têm demonstrado certa surdez.

Por Isabela Rosemback

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Step Ball Change

Se os pensamentos fossem tão ágeis como aqueles pés irlandeses a balançar as tamancas… Ah, se fossem! Não precisaria ser tão agressivo em seu sapatear. Alcançaria extremos do palco com leveza admirável, fixando a plateia ao solo e unindo cada par de mãos em sonoras palmas de mesura. Mas os passos duros em sequência provocaram o efeito reverso, e um barulho que se assemelhava ao de folhas secas a se chacoalharem por todos os setores da árvore pôde ser ouvido até mesmo da coxia. Tentava entretê-los, ali, com suas plantas dos pés cada vez mais ruidosas pelo atrito voraz com o picadeiro sobre o qual persistia em movimentar-se, em uma interação imaginária com sua Companhia. Desconcertante era que, por mais que se debatesse em sua exibição técnica, o pobre dançarino não saía do lugar –e nem os demais bailarinos avançavam os limites da cortina.  Suava ansioso e concentrado, no centro daquele tablado em que se transformara. As folhas a revolverem-se, todas, em seus galhos numerados e desconfortáveis. Aguardavam clementes pelo ato final, a partir do qual poderiam voltar à mansidão das solas macias e emborrachadas que, silentes, caminham a distribuir votos de um bom dia (ou noite) nas ruas por que passam. Os pés do profissional, a cada minuto mais ávidos por baterem o recorde de golpes da chapa de ferro sobre a plataforma, produziram, porém, som tão ensurdecedor que o escape pelas saídas de emergência do teatro tornou-se inevitável a parte da folhagem. A partir daí, tudo é lenda. Dizem que o sapateador continua lá, pele e osso, dançando insistente em sua posição, ainda que acredite atravessar o palco em momentos de delírio. Algumas folhas, também, permaneceriam trêmulas em seus galhos numerados e desconfortáveis, prisioneiras de um rodamoinho que as cercaria ao menor sinal de fuga.

Por Isabela Rosemback

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